25 de agosto de 2011

O poder do mito - parte II

Oi, de novo!
Lembram que eu comentei que iria postar aqui algumas frases do filme "O poder do mito"? Pois bem, promessa é dívida. Claro que são recortes minúsculos e o filme vale ser visto na íntegra. Eu ainda quero ler o livro! :-)
A seguir, um pouco de mito, sociedade, mulher e ritual.


"REPÓRTER: Já vimos o que acontece nas sociedades primitivas perturbadas pela civilização do homem branco. Elas se despedaçam, se desintegram, sucumbem ao vício e à doença. Não será isso que tem acontecido conosco desde que nossos mitos começaram a desaparecer?
JOSEPH CAMPELL: Sem dúvida, é isso mesmo.
R: Será por isso que as pessoas que seguem uma religião mais conservadora querem um retorno à religião dos velhos tempos?
JC: É verdade.
R: Eu entendo esse desejo. Na minha juventude, eu tinha estrelas fixas. Elas me consolavam em sua permanência e me davam um horizonte conhecido. Elas me diziam que havia um Pai amoroso, bondoso e justo lá em cima, olhando para mim aqui embaixo, pronto para me receber. Sempre pensando nas minhas preocupações.
Agora a ciência e a medicina fizeram uma faxina geral na fé.
E eu pergunto o que acontece às crianças que não têm essa estrela fixa, esse horizonte conhecido, esses mitos para apoiá-las.
JC: Basta ler o jornal, é uma confusão. Mas o que o mito tem que nos dar nesse nível imediato da instrução sobre a vida no aspecto pedagógico, são modelos de vida.
Os modelos tém que ser adequados às possibilidades da nossa época. E a nossa época vem mudando e continua a mudar tão depressa que aquilo que era adequado há 50 anos, não é mais, atualmente. Assim, as virtudes do passado são os vícios de hoje. E muitas coisas que considerávamos como vícios do passado são necessidades de hoje. E a ordem moral tem que se adequar às necessidades morais da vida real, da nossa época aqui e agora. Mas não está havendo isso. É por isso que é ridículo voltar à religião dos velhos tempos.
[...]
R: Quase todas as figuras nas cavernas-templos são masculinas. Será que era uma sociedade secreta apenas para homens?
JC: Não, mas era algo pelo qual os meninos tinham que passar.
Não se sabe ao certo o que acontecia com a mulher naquela época, porque há poucas indicações a respeito. Nas culturas primitivas de hoje, a menina se torna mulher com sua primeira menstruação. É algo que lhe acontece, a natureza faz isso com ela.
Então ela já passou pela transformação e qual é a sua iniciação? Normalmente, concite em ficar sentada numa cabaninha por certo número de dias e se dar conta de quem ela é.
R: Como é que ela faz isso?
JC: Ela fica lá sentada. Agora ela é uma mulher. E o que é uma mulher? A mulher é um veículo da vida. A vida tomou conta dela. Agora ela é um veículo para a vida.
A mulher é o centro da questão. Dar a vida, dar a nutrição. Ela é como a deusa Terra em seus poderes, e tem que perceber isso.
O menino não tem um acontecimento parecido. Ele tem que ser transformado em homem e, voluntariamente, se tornar servidor de algo maior que ele próprio.
A mulher se torna veículo da natureza, o homem se torna veículo da sociedade, da ordem social e do objetivo social.
R: E o que acontece quando uma sociedade não adota mais uma mitologia poderosa?
JC: Acontece isso que temos nas mãos. É como eu digo, se você quer saber o que significa uma sociedade sem nenhum ritual, leia o "The New York Times".
R: E o que encontramos?
JC: As notícias do dia. Jovens que não sabem se comportar numa sociedade civilizada. Creio que 50% de todos os crimes são cometidos por jovens entre 20 e 30 e poucos anos que se comportam como bárbaros.
R: A sociedade não promoveu rituais para os transformarem em membros.
JC: Não. Nenhum ritual. Foram cada vez mais reduzidos. Mesmo na Igreja Católica: eles traduziram a missa da linguagem ritual para uma linguagem que tem uma porção de associações domésticas. Cada vez que eu leio em latim, a missa em latim, volto a sentir aquela sintonia que ela provoca. É uma linguagem que nos tira do campo doméstico.
O altar é colocado para que o padre nos dê as costas e junto com ele você se volta para fora.
Agora eles viraram o altar ao contrário, parece uma criança fazendo uma apresentação. Tudo é caseiro e aconchegante.
R: Eles até tocam violão.
JC: Tocam violão. Esqueceram qual é a função do ritual. É elevar, tirar fora. Não aconchegá-lo de volta no lugar onde você sempre esteve.
R: Quer dizer, um ritual que antes transmitia uma realidade interior, hoje é uma mera forma. Tanto nos rituais da sociedade como nos ritos pessoais do casamento e da religião.
JC: O ritual deve se manter vivo. E grande parte dele está morto. É muito interessante ler sobre as culturas primitivas elementares e ver como as histórias populares, os mitos, estão sempre se transformando em função das circunstâncias desses povos.
Um povo saía de uma área onde a vegetação era o principal meio de sustento e ia morar na planície. A maioria dos índios das planícies do período em que eram cavaleiros era originária da cultura do Mississippi. Viviam ao longo do rio. E estabeleceram moradia em aldeias baseadas na agricultura. Então receberam o cavalo dos espanhóis. E com isso puderam se aventurar nas planícies e se dedicar às grandes caçadas de manadas de búfalos.
E assim a mitologia se transforma. Passa de vegetação para búfalos. Ainda notamos a estrutura das antigas mitologias de vegetação na mitologia dos índios Dakota, Pawnee, Kiowa e outros.
R: É o meio ambiente que dá forma às histórias?
JC: As histórias respondem ao meio ambiente. Entende? Mas temos uma tradição que vem do primeiro milênio a.C. de um outro lugar, e ainda lidamos com ela. Ela não se alterou nem assimilou as qualidades da nossa cultura. As novas possibilidades, a nova visão do universo. É necessário mantê-la viva. E as únicas pessoas que podem mantê-la viva são os artistas. De um modo ou de outro...
R: Artistas?
JC: Sim, a função dos artistas é a "mitologização" do ambiente e do mundo.
R: Artistas como os poetas, músicos, autores, escritores?
JC: Exatamente. Creio que tivemos alguns grandes artistas nos últimos tempos. Acho que James Joyce foi um dos grandes reveladores do mistério de crescer e de tornar-se um ser humano. Para mim, Joyce e Thomas Mann foram os principais gurus, por assim dizer, quando eu estava tentando formar minha própria vida. E nas artes visuais, houve dois homens que trabalharam com mitologia de uma forma maravilhosa: Paul Klee e Picasso.
Esses dois realmente sabiam o que estavam fazendo. E suas revelações tinham grande versatilidade.
R: Então nossos artistas são os atuais criadores de mitos?
JC: Os criadores de mitos do passado foram os equivalentes dos artistas.
[...]
R: O "Pai-nosso" começa assim: Pai nosso, que estais no Céu. Não poderia começar com "Mãe nossa"?
JC: É uma imagem metafórica, é uma imagem simbólica e deixa claro que não é nosso pai físico dizendo "Pai nosso que estais no Céu", mas o Céu também é uma idéia simbólica. Onde é o Céu? Não é nenhum lugar.
Todas as referências às imagens religiosas e mitológicas se referem a planos da consciência ou campos da experiência que existem em potencial no espírito humano, e despertam atitudes e experiências que são apropriadas à meditação sobre o mistério da fonte, nossa própria existência.
Houve sistemas religiosos em que a mãe era o familiar mais importante, a fonte. Era mais importante do que o pai. Porque nascemos da mãe e a primeira experiência de qualquer criança é a mãe. A imagem da mulher é a imagem do mundo. Pode-se dizer que a mitologia é uma tradução do mundo para uma imagem materna. Nós nos referimos à Mãe Terra, por exemplo.
R: Mas o que houve no meio do caminho com essa reverência, que nas sociedades primitivas se dirigia à figura da grande deusa, à Mãe Terra? O que aconteceu com aquilo?
JC: Isso surgiu inicialmente com a agricultura e com as sociedades agrícolas.
R: A fertilidade?
JC: Tem a ver com a terra. A mulher dá à luz assim como a terra dá à luz as plantas. Ela alimenta, assim como as plantas alimentam. A magia da mulher e a magia da terra são a mesma coisa. Estão relacionadas. A personificação dessa energia que faz nascer as formas e as alimenta, é feminina.
E assim, no mundo agrícola, da antiga Mesopotâmia do Nilo, no Egito, e nas culturas agrícolas mais antigas, a deusa é sempre a forma mística dominante.
R: Por causa dessa percepção da criação, da fertilidade.
JC: Sim, quando há a deusa como criadora -- o seu próprio corpo é o universo -- ela é idêntica ao universo.
No Egito, há a Mãe dos Céus, Nut, a deusa Nut, representada pela abóbada celeste.
R: Devia seer natural para as pessoas que queriam explicar o universo, ver na figura da mulher, a explicação para o que viam em suas próprias vidas.
JC: Não só isso, mas quando você muda o ponto de vista filosófico, a fêmea representa o que Kant chamava de formas de sensibilidade. A fêmea representa o tempo e o espaço. Ela é o tempo e o espaço, e o mistério que existe além dela está além dos pares de opostos, não é macho nem fêmea. Não é, nem deixa de ser, mas tudo está contido dentro dela e os deuses são seus filhos. Tudo o que se vê é produto da deusa. […]
R: Eu imagino como seria para nós se ao longo do caminho se tivéssemos começado a prece com "Mãe nossa", em vez de "Pai nosso". Que diferença psicológica isso faria?
JC: Faz uma diferença psicológica no caráter das culturas."

Beijinhos!

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